quarta-feira, 13 de maio de 2015

As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino

Para além de textos descritivos da nossa autoria, o livro do bairro apresentará excertos da obra “As Cidades Invisíveis” de Italo Calvino, que se referem aos aspetos discretos que marcam a identidade de um local. Apesar de serem cidades imaginárias e de terem uma atividade mais intensa que o Bairro de São Bento, são descritas como detentoras de fatores singulares que constroem situações importantes para a definição da sua identidade e que muitas vezes passam despercebidas, como conversas, pensamentos, cruzamentos de olhares, modos de vestir, comportamentos e atitudes, locais, etc. Há inclusivamente a descrição de uma Praça, que se adequa perfeitamente à Praça das Flores pelas histórias que encerra em si mesma, que não mudam mesmo que as personagens não sejam as mesmas ao longo dos tempos.



“O homem que cavalga longamente por terrenos bravios sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações.

“Da cidade de Doroteia pode-se falar de duas maneiras: dizer que se elevam das suas muralhas quatro torres de alumínio ladeando sete portas de ponte levadiça sobre o fosso cuja água alimenta quatro verdes canais que atravessam a cidade e a dividem em nove bairros, cada um deles com trezentas casas e setecentas chaminés; e tendo em conta que as raparigas solteiras de cada bairro se casam com jovens de outros bairros e que as suas famílias trocam os bens que cada uma tem: bergamotas, ovos de estrujão, astrolábios e ametistas, fazer cálculos com base nestes dados até saber tudo o que se deseja na cidade no passado e no presente e no futuro; ou dizer como o condutor de caminhos que me leva até lá: “Cheguei ali muito jovem, uma manhã, muita gente a correr pelas ruas a caminho do mercado, as mulheres tinham belos dentes e olham-nos bem nos olhos, três soldados em cima de um palco tocavam cornetim, por toda a parte giravam rodas e ondulavam letreiros coloridos. Até então eu só tinha conhecido o deserto e as pistas das caravanas. Nessa manhã em Doroteia senti que não havia nenhum bem na vida a que eu não pudesse aspirar. Com o passar dos anos os meus olhos voltaram a contemplar as imensidões do deserto e as pistas das caravanas; mas agora sei que este é só um dos muitos caminhos que se abriam à minha frente nessa manhã em Doroteia”.


“Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever-te a cidade de Zaira de altos bastiões. Poderia dizer-se de quantos degraus são as ruas em escadinhas, como são as aberturas dos arcos dos pórticos, de quantas lâminas de zinco são cobertos os telhados; mas já sei que seria o mesmo que não te dizer nada. Não é disto que é feita a cidade, mas sim de relações entre as medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado: a distância a que está do solo um lampião e os pés a balançar de um usurpador enforcado; o fio estendido do lampião à varanda da frente e os arcos que enfeitam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela varanda e o salto do adúltero que a galgava de madrugada; a inclinação de uma goteira e o pulo de um gato que entra pela janela; a linha de tiro do navio bombardeiro que apareceu de repente por detrás do cabo e a bomba que destrói a goteira; os puxões das redes de pescadores e os três velhos que sentados no cais a remendar as redes contam uns aos outros pela centésima vez a história do navio bombardeiro do usurpador, de quem se diz que era filho ilegítimo da rainha, abandonado à nascença ali no cais.
É desta onda que reflui das recordações que a cidade se embebe como uma esponja e dilata. Uma descrição de Zaira tal como é hoje deveria conter todo o passado de Zaira. Mas a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos para-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes.”



“O olhar percorre as ruas como páginas escritas: a cidade diz tudo o que devemos pensar, faz-nos repetir o seu discurso, e enquanto julgamos visitar Tamara limitamo-nos a registar os nomes com que ela se define a si mesma e todas as suas partes.
Como realmente é a cidade sob este denso invólucro de sinais, o que ela contém ou oculta, o homem sai de Tamara sem tê-lo sabido. Fora dela espraia-se a terra vazia até ao horizonte, abre-se o céu por onde correm as nuvens. Na forma que o acaso e o vento dão às nuvens o homem fica logo absorvido a reconhecer figuras: um veleiro, uma mão, um elefante…”


“Zora tem a propriedade de ficar na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas, e das casas ao longo da rua, e das portas e das janelas das casas embora não apresentando nelas beleza ou raridades particulares. O seu segredo é o modo como a vista percorre figuras que se sucedem como numa partitura musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota. O homem que sabe de cor como é Zora, nas noites em que não consegue dormir, imagina que anda pelas ruas e recorda a ordem em que se sucedem o relógio de cobre, o toldo às riscas do barbeiro, o repuxo dos nove esguichos, a torre de vidro do astrónomo, o quiosque do vendedor de melancias, a estátua do ermita e do leão, o banho turco, o café da esquina, a travessa que dá para o porto.”


“… as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se imaginam mil coisas umas das outras, os encontros que poderiam verificar-se entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as ferroadas. Mas ninguém dirige uma saudação a ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois afastam-se procurando novos olhares não param.
Passa uma rapariga eu faz rodar uma sombrinha apoiada no ombro, e abana também um pouco o redondo das ancas. Passa uma mulher vestida de preto com ar de velha, de olhos inquietos por baixo do véu e com os lábios a tremer. Passa um gigante tatuado; um homem novo de cabelos brancos; uma anã; duas gémeas vestidas de cor de coral. Algo corre entre eles, uma troca de olhares como linhas a ligarem uma figura à outra e desenhando setas, estrelas, triângulos, até que todas as combinações se esgotam num instante, e entram em cena outras personagens: um cego com um leopardo pela trela, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher gordíssima. Assim entre os que por acaso se encontram juntos a abrigar-se da chuva debaixo de um pórtico, ou se apinham debaixo de toldos de um bazar, ou param para ouvir a banda no coreto da praça, consumam-se encontros, seduções, ligações, cópulas, orgias, sem que se troquem uma palavra, sem que se toquem com um dedo, quase sem se olharem.”


“Em Melânia, sempre que se entra na praça, fica-se no meio de um diálogo: o soldado fanfarrão e o parasita ao sair de uma porta deparam-se com o jovem perdulário e a meretriz; ou o pai avaro da solteira dá as últimas recomendações à filha apaixonada e é interrompido pelo servo palerma que vai levar um bilhete á alcoviteira. Volta-se a Melânia passados anos e reencontra-se o mesmo diálogo que continua: entretanto morreram o parasita, a alcoviteira, o pai avaro; mas o soldado fanfarrão, a filha apaixonada e o servo palerma tomaram os seus lugares, por sua vez substituídos pelo hipócrita, pela confidente e pelo astrólogo.
A população de Melânia renova-se: os dialogantes morrem um a um e entretanto nascem os que tomarão lugar por sua vez no diálogo, quer num papel ou noutro. Quando alguém muda de papel ou abandona a praça para sempre ou faz a sua estreia, produzem-se alterações em cadeia, enquanto não são distribuídos de novo todos os papéis; mas entretanto ao velho irado continua a replicar a criadita espirituosa, o usuário não desiste de perseguir o jovem deserdado, a ama de consolar a afilhada, embora nenhum deles conserve os olhos e a voz que tinha na cena anterior.
Acontece às vezes um único dialogante representar ao mesmo tempo dois ou mais papéis: tirano, benfeitor, mensageiro; ou que um papel seja desdobrado, multiplicado, atribuído a cem, a mil habitantes de Melânia: três mil para a hipócrita, trinta mil para o escroque, cem mil filhos de reis caídos em desgraça que aguardam o reconhecimento.
Com o passar do tempo até os papéis já não são exatamente os mesmos de antes; certamente a ação que eles desenvolvem através de intrigas e golpes de cena conduz a um qualquer desenlace final, de que continua a aproximar-se até mesmo quando a meada parece enredar-se ainda mais e aumentarem os obstáculos. Quem chegar à praça em momentos sucessivos ouve que de acto para acto o diálogo se altera, mesmo que as vidas dos habitantes de Melânia sejam demasiado curtas para se poder dar por isso.”



“Tal como todos os habitantes de Filias seguimos linhas em ziguezague de uma rua para outra, distinguimos zonas de sol e zonas de sombra, aqui uma porta, ali uma escada, um banco onde podemos pousar o cesto, uma cunha onde o pé tropeça se não dermos por ela. Todo o resto da cidade é invisível. Filias é um espaço em que se traçam percursos entre pontos suspensos no vácuo, o caminho mais curto para chegar à loja daquele mercador evitando o portal daquele credor. Os nossos passos percorrem o que não se encontra fora dos olhos mas sim dentro, se pultado e apagado: se entre dois pórticos um continuar a parecer-nos mais alegre é porque é aquele por onde passava há trinta anos uma rapariga de largas mangas bordadas, ou é só porque recebe a luz a uma certa hora como aquele pórtico, que já não nos lembramos de onde ficava.
Milhões de olhos erguem-se para as janelas pontes alcaparras e é como se percorressem uma página em branco. Muitas são as cidades como Filias que se subtraem aos olhares se não as apanharmos de surpresa.”



“Chamamos a ditar as normas para a fundação de Períncia os astrónomos decidiram o lugar e o dia de acordo com a posição das estrelas, traçaram as linhas cruzadas do decumano e do cardo orientadas uma pelo curso do sol e a outra pelo eixo em torno do qual giram os céus, dividiram o mapa segundo as doze casas do zodíaco de modo que cada templo e cada bairro recebesse a justa influência das devidas constelações, fixaram o ponto da muralha em que deviam abrir-se as portas prevendo-se que cada uma enquadrasse um eclipse da lua nos próximos mil anos. Períncia – garantiram – reflectiria a harmonia do firmamento; a razão da natureza e a graça dos deuses dariam formas aos destinos dos habitantes.
Seguindo com exactidão os cálculos dos astrónomos, foi edificada Períncia; gentes diversas vieram povoá-la; a primeira geração dos nascidos em Períncia começou a crescer entre os seus muros; e esses por sua vez chegaram à idade de casar e ter filhos.
Nas ruas e praças de Períncia hoje encontram-se aleijados, anões, corcundas, obesos, mulheres de barba… Mas o pior não se vê; elevam-se guturais das suas caves e celeiros, onde as famílias ocultam os filhos com três cabeças ou com seis pernas.
Os atrónomos de Períncia deparam-se com uma difícil opção: ou admitir que todos os seus cálculos estão errados e os seus números não conseguem descrever o céu, ou revelar que é precisamente a ordem dos deuses que se reflete na cidade dos monstros.”

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